— Daí ela me disse: “Eu não aguento mais!” — disse Álvaro, em tom teatral.
O riso foi inevitável.
— O que você estava
fazendo? — indagou Marsílio. — Um canal sem anestesia?
Então o riso se tornou
uma gargalhada uníssona.
— Vocês não acreditam? —
insistiu o primeiro, depois de tomar um gole de chope. — Perguntem a ela. Ela
dirá que teve orgasmos múltiplos.
— Se essa mulher existe —
disse John, dono do bar, com seu sotaque norte-americano e com uma ponta de
arrogância, natural de sua personalidade —, a única coisa que nos dirá é que
você mais parece um açougueiro do que um dentista.
— Vou levar isso em
consideração — retrucou Álvaro, encarando John com seus olhos azuis muito vivos
—, afinal de contas fui eu quem tratou da maioria desses trambolhos tortos que
você tem na boca e insiste em dizer que são dentes.
— Então deve ser por
causa disso que eles são tão bonitos assim — ironizou John, abrindo a boca em
seguida para mostrar os dentes. — Olha só o dentista que fui arrumar: um
incompetente! E ainda por cima metido a conquistador.
— Eu só tenho trinta e
cinco anos, tenho que curtir a vida, não acha?
— Sim, mas não precisa
mentir tanto — contestou John. — Você fala demais!
Álvaro meneou a cabeça,
erguendo uma das mãos num gesto descontraído, de quem não está nem aí para a
opinião dos outros.
— Bem, o papo está bom,
mas a patroa me espera em casa — disse Afonso. — Lá vou eu descer a ladeira. O
inferno me espera.
— Dê lembranças ao Diabo
— disse John, em tom de gozação, pois sabia que Afonso e a esposa não estavam
se entendendo muito bem. Quem sofria com a situação era o filho do casal, o
pequeno Caio, de seis anos.
Afonso, que seguia rumo à
saída, mesmo de costas, deu com a mão em repúdio ao que ouviu de John.
— Modere suas palavras,
meu caro amigo. Elas podem se voltar contra você — disse Leandro Maldonha,
aproximando-se do balcão. A voz era rouca e excessivamente grave, do tipo que
pode ser percebida nos beberrões perdidos. Era um senhor de oitenta e três
anos, mais conhecido como Viúvo.
Quando estava no bar, costumava ficar sentado a uma velha mesa isolada no fundo
do salão, bebendo vinho e fumando um cigarro atrás do outro, suas únicas
diversões. Ninguém sabia muito sobre ele. Além do mais, quase todas as pessoas
mais velhas da região, que o conheciam de longa data, haviam morrido ou estavam
em suas casas, sem saber discernir o dia da noite. E as que na época eram
adolescentes ou crianças e que ainda moravam na região, simplesmente o
ignoravam, como se ele fosse apenas um velho qualquer à espera da morte. Com os
anos, todos se acostumaram a seus hábitos estranhos, mas ainda havia os que
atravessavam a rua só para não passar do mesmo lado em que ele passava. Seria
por medo, receio, algo do gênero, coisa que talvez as pessoas fizessem por
força do hábito ou apenas por mera e medíocre superstição.
— Desde que venha na
forma sinuosa de uma bela mulher, pra mim, está ótimo, Viúvo — retrucou John,
em resposta ao que Maldonha lhe dissera, e abriu um horrível sorriso, deixando
à mostra os dentes tortos, sob um espesso bigode malfeito, que quase lhe cobria
a boca.
Ninguém percebeu quando Maldonha
se aproximou do balcão. Havia pouca iluminação no ambiente, para imitar os
bares dos antigos filmes de faroeste. Era um fetiche do norte-americano John, de
cinquenta e sete anos. Radicado no Brasil havia mais de duas décadas, ele
montou o bar com características típicas de um saloon havia pouco mais de seis anos e deu ao estabelecimento o
mesmo nome de seu estado natal: Texas. Tudo isso na tentativa de fazer algo
diferente. E, como esperava, conseguiu agradar a freguesia. Tinha fregueses
fiéis, como esse grupo de amigos que sempre estava por lá para beber e jogar
conversa fora. Até mesmo o dentista Álvaro, que morava em um bairro mais
afastado, mas por ter um consultório na região, sempre passava para tomar um
chope.
— O que dizemos, muitas
vezes fica no ar, só esperando o momento certo pra nos atacar, e nunca a
pancada é leve — prosseguiu Maldonha. — A língua do homem é muito mais venenosa
do que se pode imaginar. Não sei como não morremos envenenados com a própria
saliva.
Afonso estava prestes a
sair do bar, mas, surpreso ao ouvir a voz de Maldonha, parou de andar e olhou
para trás. Era a primeira vez que via o velho dirigir a palavra a alguém sem
que tivessem falado com ele primeiro. Sem saber bem por que, resolveu voltar.
Ao retornar, encostou ao balcão a barriga enorme, que passou a cultivar quando
se casou, e pediu outro chope.
— Não morremos
envenenados com a própria saliva porque lambemos muitas coisas por aí — brincou
John, enquanto enchia uma caneca com chope. — Uma delas pode ser o antídoto.
Começo a suspeitar que esse antídoto seja mulher.
— Acho que não, senão
você já estaria morto há tempos, e a causa da morte seria envenenamento pela própria
saliva — contrariou Afonso, sem saber direito do que eles falavam, embora
tivesse uma vaga ideia pelo que havia escutado enquanto saía do bar.
— Aí é que você se
engana! — exclamou John, orgulhoso, e, antes de continuar, colocou a caneca de
chope sobre o balcão diante de Afonso e deu duas tapas no próprio peito. — É
bem provável que o solteirão aqui faça mais sexo do que o amigo barrigudo —
olhou de soslaio e de um jeito debochador para a avantajada barriga de Afonso.
— Deve fazer muito tempo que você não vê o que tem entre as pernas, estou certo?
Afonso balançou a cabeça
negativamente, arrumando a manga do camisão azul que usava. O dono do bar continuou:
— É bem mais fácil que
essa cerveja mate você antes que a minha saliva me mate.
Afonso escancarou uma
risada irônica e retrucou:
— Você se acha engraçado,
não é mesmo?
O tom da conversa era
amistoso. Ofendiam-se, era evidente, mas apesar dos insultos, tudo não passava
de uma chacota entre amigos.
Encostado ao balcão,
Maldonha prestava atenção ao que eles diziam. Todos estranharam o fato de ele
ter ido até junto deles daquela forma inesperada, pois não era de seu feitio
ficar batendo papo com alguém. Na verdade, mal dizia bom-dia às pessoas.
— Não existe nada fora do homem, que nele entrando, possa contaminá-lo
— disse Maldonha devagar —, mas sim o que
sai da boca do homem é o que o contamina.
— Do que você está
falando? — perguntou John, em tom de gozação. — Você deve estar ficando gagá.
Nunca fala com ninguém e agora vem dar uma de filósofo, é?
Maldonha aproximou-se de
John e só não chegou mais perto porque o balcão estava entre os dois. John
tinha cerca de um metro e setenta de altura, corpulento, enquanto Maldonha
exibia um corpo magro e estatura mais baixa. Se houvesse um desentendimento a
ponto de ocorrer agressão física, o velho sairia em desvantagem, mas, embora
John o insultasse muito, jamais seria capaz de agredi-lo.
— São Marcos, capítulo
sete, versículo quinze — respondeu Maldonha de forma ríspida, mas sem elevar o
tom de voz. — Se é que você conhece um único trecho da Bíblia Sagrada… Creio
que não. Acho que estou perdendo meu tempo?
Afonso bebeu um gole de
chope e perguntou:
— O que você quer nos
dizer, Maldonha? Espero que não seja uma história de bicho-papão, mas, se for,
tomara Deus que ele não tenha preferência por crianças barrigudas.
Todos riram, menos
Maldonha.
— Não. Pode ficar
tranquilo — disse o velho, voltando os olhos para John, enquanto pegava o maço
de Pall Mall no bolso da camisa. Encaixou um cigarro no canto da boca,
acendeu-o com um fósforo e soprou a espessa fumaça recém-tragada para o alto. —
Ele prefere os bigodudos.
Novas risadas encheram o
local, seguidas de um breve silêncio, mas apenas onde eles estavam, pois o bar
era espaçoso e havia um vasto salão que dispunha de várias mesas. Era
sexta-feira, pouco mais de oito horas da noite, e o movimento era bom. Em cerca
de umas quatro mesas havia grupos de homens e algumas mulheres. A maioria
jovem, com pouco mais de vinte anos. Sempre estavam ali, bebendo, comendo,
jogando bilhar, namorando — se é que se pode chamar de namoro a imoralidade na
qual viviam. Eram uns depravados — e algumas raras vezes arrumando confusão.
Não eram o que se pode chamar de a escória da humanidade, mas também não eram o
virtuosismo da juventude moderna.
— Ele
quem, velho maluco? — esbravejou John, colérico, rompendo o silêncio de modo
repentino. — Você se julga engraçado, não é, velho doido?!
— Eu tenho uma história
pra contar — prosseguiu Maldonha, sem dar a mínima para as ofensas de John —,
que vai fazer vocês entenderem o que quero dizer.
Nesse momento, Pedro, um
agente funerário, que também trabalhava como marceneiro, entrou no bar. Passou
pela velha porta vaivém, que imitava as portas dos antigos bares de faroeste,
mais um fetiche de John, e caminhou para o balcão. As duas partes da porta de
madeira, com quase um metro de altura, balançaram para a frente e para trás,
provocando um rangido nas dobradiças.
— Olhe quem vem chegando
ali! — alertou Álvaro, olhando para Pedro.
— Chegou em ótima hora —
ressaltou Marsílio. — Agora o time está completo. Chega mais. Toma um chope com
a gente.
— O que está acontecendo?
— perguntou Pedro, enquanto cumprimentava os amigos um a um com um aperto de
mão. A presença de Maldonha foi algo que ele não achou comum.
— Não sei bem, mas parece
que Maldonha quer nos contar algo — informou Marsílio, enquanto apertava a mão
de Pedro, e voltando-se para Maldonha, indagou: — Não é mesmo?
— Não é qualquer coisa
jogada ao vento — esclareceu Maldonha, passando o cigarro de uma mão para a
outra para cumprimentar Pedro. As mãos do velho eram ásperas, e seu aperto de
mão era suave mas firme. — É mais do que isso. É um alerta.
— Quer nos contar algo? —
perguntou Pedro, sem demonstrar entusiasmo. Em seguida, olhou para John: —
Gringo, um chope, por favor!
— A princípio, essa história
que vou contar pode parecer sem sentindo — disse Maldonha —, mas é algo que fez
um homem padecer por toda a vida. Se eu fosse dar um nome a essa história,
seria “A Valsa”.
Ao dizer a palavra valsa, algo diferente ocorreu na voz e
na expressão de Maldonha. Era como se os olhos o levassem para muito além da
realidade, um mundo de terror vivido outrora, mas isso não foi percebido por
nenhum deles, talvez por não o conhecerem muito bem. Todos ficaram quietos,
esperando a história ser iniciada. John pediu a uma das duas moças, que
trabalhavam para ele, que atendesse a mesa cinco, pois tinha acabado de ouvir
um rapaz chamar.
Maldonha olhava sério para os cinco que estavam ali,
enquanto fumava o seu cigarro. Eram intensas tragadas, uma atrás da outra.
O que achou desse capítulo? Comente, critique logo abaixo.
Leitura leve, um ótimo ritmo. Personagens que deixam o leitor com vontade de querer conhecê-los melhor. As mudanças de fonte no texto têm algum significado cifrado? Creio que sim. Os que os próximos capítulos dirão..
ResponderExcluirQue visita ilustre! obrigado por ler e comentar. Se tiver algo que não goste, sua opinião será de grande importância. Espero que prossiga nos demais capítulos!
ExcluirAbraço!