segunda-feira, 1 de maio de 2017

Capítulo 4 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Quando chegou a casa, Pedro ainda pensava em Maldonha. A história contada por ele o deixara com uma ligeira sensação de agonia que não conseguia explicar e tampouco queria senti-la. Aproveitou que a filha ainda não havia voltado da faculdade de Jornalismo, que cursava havia dois anos, e foi tomar banho gelado. As paredes do banheiro pareciam rodar, e a água fria batendo nas costas parecia aplicar-lhe inúmeros golpes de vergasta. A noite era quente, mas ainda assim os dentes de Pedro batiam em um ritmo descompassado. A cabeça latejava no ritmo das batidas do coração, e ele começou a reclamar consigo mesmo, prometendo pela milésima vez que nunca mais poria um único gole de cerveja na boca. Promessa que sempre fazia quando bebia demais, mas nunca cumpria, e sabia que também não cumpriria dessa vez.
Depois da tortura sob o chuveiro, com a cabeça girando com menos velocidade, foi à cozinha fazer um café bem forte. Desde que se divorciara, havia três anos e meio, passou a se virar sozinho, mas a filha dizia que não precisava, pois ela tomaria conta dos afazeres domésticos, porém ele sempre dividia com ela boa parte das tarefas. Lívia optou por ficar com o pai, apesar de ser muito apegada à Ângela, sua mãe. Ângela se envolvera com um homem na empresa de tecelagem em que trabalhava, e, antes mesmo que o marido descobrisse, ela contou-lhe o que estava acontecendo. Tentou ser honesta, mesmo assim Pedro ficou arrasado. Ele não fez escândalo ou coisa do gênero, apenas quebrou um vaso de louça que ficava sobre a mesinha de centro na sala, arremessando-o colérico contra a parede, finalizando a conversa ainda no início. Em seguida, transtornado, saiu de casa e bateu a porta com excessiva força, abafando a voz de Ângela que o chamava. Naquela noite, quando voltou para casa, passava da meia-noite. Não havia bebido, pois beber, na opinião dele, era coisa para os momentos de distração, não para resolver problemas e tampouco situações como as que estava vivendo. Nos dias seguintes, não disse uma única palavra; escondia-se pelos cantos, e a filha o presenciou várias vezes chorando, enquanto ele trabalhava na marcenaria. Ela sabia o que havia acontecido, a mãe lhe contara, mas, para não constranger o pai, fingiu não saber por um bom tempo.
Uma semana depois de ter confessado ao marido estar se envolvendo com outro homem, Ângela saiu de casa, e, quando o divórcio estava prestes a ser concluído, Pedro disse que venderia a casa, mas ela achou não ser necessário. Portanto, entraram em um acordo e decidiram que a casa ficaria para Lívia, que preferiu ficar com o pai a morar com a mãe e o atual companheiro dela. Ângela casou-se novamente dois anos após o divórcio, e Lívia passou a visitá-la quase todas as semanas, salvo raríssimas exceções.
Feito o café, Pedro tomou uma boa quantia sem adoçar. Era horrível, mas sempre que bebia além da conta, fazia o sacrifício. Depois encheu outro copo e dirigiu-se para a sala onde se atirou no sofá, ligou a tevê e ficou à espera da filha, trocando exaustivamente de canal com o auxílio do controle remoto.
Lívia chegou a casa pouco mais de uma hora depois; a primeira coisa que fez foi dar um beijo estalado no rosto do pai.
— Você bebeu, não é, senhor Pedro? — perguntou ela, num tom de censura, no entanto sutil. Lívia respeitava muito o pai, e o fato de ele beber era encarado com indulgência de filha. Supunha, entretanto, que essa indulgência contivesse um desejo oculto de discutir com ele a respeito do assunto. Sabia que o pai não era alcoólatra, mas ela carregava um sentimento de preocupação consigo, pois ultimamente ele ia quase todos os fins de semana ao Texas, o que não costumava fazer, e isso a deixava um tanto inquieta.
Pedro pôs-se de pé diante da filha.
— Um pouco… — respondeu ele, enquanto pegava o copo que estava sobre a mesinha de centro —… quero dizer, o suficiente pra ter que tomar este café horrível — mostrou o copo à filha.
Lívia colocou os cadernos sobre o sofá e abraçou o pai, dando-lhe mais um beijo. Pedro tomou cuidado para não entornar o café sobre eles.
— Você está com fome? — perguntou ela, logo após o abraço.
— Eu não sei.
Lívia sorriu e passou o braço esquerdo sobre o ombro do pai e, juntos, seguiram para a cozinha. Ela se esticando um pouco, pois era uns dez centímetros mais baixa que ele, que tinha cerca de um metro e setenta e cinco de altura e boa forma física.
— Como não sabe? Ou está ou não está, ué!
Pedro sorriu.
— Eu acho que… não. Mas o que vai fazer pra nós?
— Um lanche — respondeu ela, apressando os passos até a porta que comunicava a sala com a cozinha. Parou sob a soleira e voltou-se para o pai. — Presunto e queijo, assim está bom pra você?
— Duas fatias de queijo bem derretidas, mas acho que você vai ter que fazer outra coisa pra beber, porque o café não está bom não.
Ambos riram alegremente.
O presunto e o queijo chiavam na frigideira. Pedro estava sentado à mesa, observando a filha fazer os lanches. Admirava-a calado, com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, e o queixo, sobre a mão aberta. Lívia era muito bonita; dezenove anos e uma beleza digna de prêmio, pensava ele, deixando a ideia vaguear na cabeça vezes sem conta, enquanto a filha estava ao pé do fogão aguardando o momento certo para desligar o fogo. Tanto no jeito quanto na aparência, ela lembrava muito a mãe, tinha a pele morena clara, a boca bem desenhada, de lábios finos, um rosto oval, de uma beleza singular e natural, os olhos eram puxados como os do pai e verdes como os da mãe, pois os de Pedro eram castanho-claros; mas, embora fosse tão bonita quanto a mãe, não namorava sério alguém desde o último ano do colegial, havia pouco mais de dois anos; no momento, preferia estudar a se envolver em um novo relacionamento. O último rapaz que namorou foi uma baita decepção, uma vez que namorar duas moças ao mesmo tempo não era nenhum feito extraordinário. Marcelo namorava Lívia havia quatro meses e saía com outra garota, e ambas não sabiam da façanha do rapaz, mas tal ato virtuoso veio à tona quando um dia Lívia o encontrou no shopping com a outra moça. A situação a deixou arrasada, embora naquele momento tenha feito pose de superior. Segurou o choro, aproximou-se e, sem que Marcelo percebesse, parou atrás dele. Ele estava com a mão direita em volta da cintura da moça, olhando sapatos em uma vitrine, quando viu o reflexo de Lívia no vidro à sua frente. Por um instante, incrédulo, ele se manteve de costas, olhos fixos na imagem refletida no vidro, para então se virar, na esperança de não se deparar com Lívia, mas com uma moça muito parecida com ela.
— Não vai apresentar a minha sócia, Marcelo? — perguntou ela, voz embargada.
A moça que estava com Marcelo ficou sem entender o que estava acontecendo.
— Eu posso explicar… — tentou argumentar Marcelo.
— Explicar o quê?! — interrompeu Lívia, eufórica.
— O que está acontecendo aqui?! — a outra jovem se manifestou.
Lívia olhou para a moça e percebeu que ela também não sabia da característica dual que Marcelo escondia.
— Pergunte ao meu namo… ex-namorado — disse, enquanto voltava os olhos para Marcelo. — Ele pode explicar!
Lívia deu as costas e já estava indo embora quando Marcelo a segurou pelo braço.
— Como assim, ex-namorado?! O que você quer dizer com isso?
— Quer fazer o favor de largar o meu braço, antes que eu faça um escândalo — os olhos estavam úmidos; não faltava mais nada para ela começar a chorar. — Você está me machucando!
Marcelo soltou o braço de Lívia.
— Acabou! — gritou ela. — É isso o que quero dizer. Acabou!
Houve um silêncio, e eles se olharam por um breve instante. Depois, Lívia ajeitou no ombro a alça da pequena bolsa, deu as costas e saiu chorando. Marcelo ficou observando-a afastar-se a passos rápidos, quase correndo. A seguir, quando ele resolveu falar com a outra moça, não a encontrou mais; ela também havia ido embora sem que ele percebesse.
Naquele dia, quando chegou a casa, Lívia trancou-se no quarto. Não foi à escola durante uma semana; mal saía do quarto e se recusava a atender aos telefonemas de Marcelo, que desistiu de continuar ligando depois que Pedro deu-lhe um sermão.
Na época, Lívia teve de contar com o apoio do pai, pois a mãe já não morava com eles. Os dias subsequentes não foram fáceis. Foi penoso para ela acostumar-se ao término do namoro, ainda mais porque Marcelo insistia em querer reatá-lo, pedindo perdão, dizendo que a amava, que não conseguiria viver sem ela e outras coisas do gênero, mas a decisão dela era irrefutável. Ela dizia que não o perdoava e era bom que ele aceitasse isso; não adiantava insistir porque, de modo algum, queria mais namorá-lo, pois não aguentava nem sequer olhar para a cara dele. Foi assim por semanas seguidas, até que o candidato a galã desistiu e, dias depois, já estava saindo com outra moça.
— Prontinho, senhor Pedro — disse Lívia, ao pôr o prato com o lanche sobre a mesa. — Espere um pouco, que vou fazer um suco.
Lívia foi até o armário, pegou uma embalagem de suco instantâneo sabor manga e uma jarra. Preparou-o e levou-o para a mesa. Comeram sem muita conversa. Pedro parecia feliz. Definitivamente, o divórcio era coisa do passado, e isso alegrava a filha, pois ela detestava ver o pai triste, sobretudo da maneira que o vira na época da separação.
— Hoje, quando eu estava indo pra faculdade — disse Lívia, balançando lentamente o copo em movimentos giratórios —, vi o Leandro.
— Que Leandro? — perguntou Pedro, assim que engoliu o último pedaço de pão. — O Maldonha?
— É. Esse que todos chamam de Viúvo.
— O que é que tem?
Lívia franziu a testa, pensativa, como se analisasse algo mentalmente.
— Nossa, pai, nem parece que ele tem uns noventa anos! — exclamou ela, admirada.
— A gente não tem certeza que o velho Maldonha tem mesmo uns noventa anos.
— Mas é o que todos dizem. Nossa vizinha, a dona Carla, deve ter uns setenta…
— Setenta e seis — completou Pedro.
— Então, ela nem tem a idade que ele tem e já não fala coisa com coisa. A única diferença é que o Leandro não fala com ninguém. Mal dá bom-dia quando a gente passa por ele.
Por um instante, Pedro pensou na história que Maldonha havia contado nessa noite. Já havia escutado de tudo um pouco, mas nada tão estranho e surpreendente. Não era apenas a história em si, mas como havia sido contada. Em alguns momentos, enquanto Maldonha falava, Pedro tivera uma absurda impressão de que aquilo pudesse de fato ter acontecido, mas afastara a vaga ideia da cabeça; era realmente um absurdo crer em uma coisa como aquela, ainda mais ele, que sempre fora tão cético em relação à criação do mundo, Deus, o Diabo, o Céu e o Inferno. Logo ele. Não, Pedro não podia crer naquela história. De modo algum podia crer.
Quem realmente é o Diabo? Quem realmente é o Diabo? — disse Pedro em voz sussurrada para si; de tão absorto, esqueceu-se da filha.
—… não é mesmo, pai? — foi a única coisa que ouviu de Lívia.
— O quê…? Desculpe, Lívia, não foi a minha intenção… me distrair — disse ele, passando a mão no braço da filha.
— Quem é realmente o quê? Você está bem, pai?
— Esqueça! Não tem importância — pediu ele, tentando esconder de si mesmo o fato de estar pensando outra vez naquela história. — Do que você estava falando?
— A dona Carla, ela não fala coisa com coisa.
— Ela está senil… completamente, meu bem. Há uns três meses, ela estava sentada em uma cadeira de balanço na frente do portão da casa dela, tomando sol. A filha estava ao lado dela. Então, eu parei pra dizer um oi, e ela me perguntou como estava o meu bebê, se já estava andando.
— Nossa! — sussurrou Lívia, espantada. — O bebê era eu?
— Sim. Foi constrangedor. Eu não sabia o que dizer. Foi então que Marlene disse que eu não precisava me preocupar, que a mãe dela já se atrapalhava toda quando a questão era data.
Ela já está andando há quase dezenove anos, foi o que Pedro pensou em dizer no dia, em meio a um riso maldoso e incontrolável, mas foi só um pensamento cretino e desditoso, que ele queria esquecer, como todos os outros que o perseguiam no momento, fazendo-o se perder na conversa com a filha.
 Lívia olhava atentamente para o pai, enquanto ele bebia o resto do suco.
— Bem, acho que está tarde — ao final do suco ele alertou, pondo-se de pé.
— Você vai trabalhar amanhã?
Pedro sorriu e respondeu satisfeito:
— Não. Estou de férias.
— Que bom! Mas não ia ser só em agosto?
— Era, mas resolveram adiantar e dar agora em março mesmo. Agosto, não sei por que razão, morre muita gente. Há muito trabalho a ser feito nessa época.
— Credo, pai! Que coisa mórbida! ­­— exclamou ela, voz baixa. — Estranho, não é? Mês de agosto…
— É. É estranho e também inexplicável, mas eu trabalho com isso há anos e no mês de agosto sempre foi assim: muito trabalho a ser feito — Pedro fez uma cara de espanto e resolveu mudar de assunto. — Hoje eu só trabalhei até as cinco da tarde, mas quando cheguei em casa, você já havia ido pra faculdade.
— E na marcenaria, você vai trabalhar?
— Eu acho que não — respondeu ele, enquanto colocava o prato e o copo sobre a pia. — Neste sábado e domingo não quero ouvir nenhum barulho de madeira sendo cortada. E você vai à sua mãe?
— Eu não sei… Talvez eu apenas telefone. O que você acha?
— Você é quem sabe.
Lívia levantou-se e também colocou o prato e o copo na pia. Depois guardou a jarra que continha o restante do suco na geladeira.
— Se você ficar em casa, a gente pode assistir a uns filmes na tevê — propôs Pedro.
— Eu tenho algo melhor — disse ela, em meio a um largo sorriso, decidida a passar aquele fim de semana com o pai.
— O quê? — perguntou ele, cruzando a porta em direção à sala.
Lívia foi atrás do pai e, abraçando-o como se quisesse subir em suas costas e ser levada nos ombros dele, propôs:
— Que tal a gente ir ao cinema?
— É uma boa — concordou ele, falando com certa dificuldade por causa do peso da filha nas costas. — Isso se você não me matar antes.
Pedro fez um esforço e, quando conseguiu se virar, jogou a filha sobre o sofá. Lívia pegou uma almofada e atirou no pai, mas ele a agarrou com as mãos.
— Que filme vamos ver?
— Então você vai? — alegrou-se ela, ajeitando-se no sofá.
Ele fez que sim com a cabeça.
— A gente pode assistir… — ela ergueu os olhos, enquanto tentava trazer à memória algum filme que estivesse em cartaz —… não sei. Lá a gente escolhe, pode ser?
A Valsa, estrelando Leandro Maldonha, pensou Pedro, com um quê de morbidez.
— Pode ser — concordou ele. — Lá a gente escolhe.


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