domingo, 21 de maio de 2017

Capítulo 7 - O Mistério do Viúvo Maldonha


Uma Ocasião Especial


Instantes depois, Maldonha voltou do banheiro enxugando as mãos na lateral das calças.
         — Bem — disse ele, encostando-se ao balcão —, a mãe desse rapaz dessa história… esse tal Marcos, se chamava Maria. Tudo começou quando ele entrou no quarto dela, e ela quase teve um ataque ao ver que ele estava nu.
— Nu?! — estranhou Afonso.
— Sim, nu — repetiu Maldonha, olhando para Afonso. — Ele perguntou o que ela achava daquilo, mas ela não respondeu; estava abismada. Ele a chamou pra sala, pois tinha algo a mostrar pra ela. Ela estranhou toda aquela atitude do filho, que podia ter todos os defeitos do mundo, mas naquele momento estava completamente diferente do que era. Imaginem a aflição dela ao ter que cruzar aquela porta e, talvez, ver algo ainda mais constrangedor do que o filho nu… Mesmo assim, ela começou a caminhar em direção à porta. No outro cômodo se deparou com muitas pessoas, que cochichavam todas ao mesmo tempo. Ela se aproximou deles. Tudo era estranho, pois apesar de estar nu, Marcos passava despercebido por todos, que olhavam apenas pra ela, como se ela estivesse sozinha. Ao chegarem no centro da sala, ela se deparou com um caixão repleto de flores e, enquanto olhava perturbada para o caixão, Marcos, que ainda segurava a mão dela, perguntou: “E assim, que tal estou?”.
Maldonha fez uma pausa; em seguida, continuou:
— Maria não conseguiu responder à pergunta. Não era o caixão que a deixava com uma sensação de enjoo; era outra coisa. Era a mais confusa e assustadora cena que tinha visto na vida. Era algo que uma pessoa, em sã consciência, nunca acreditaria que pudesse ser possível; mas estava ali, diante de seus olhos, o seu filho nu, segurando a mão dela e, ao mesmo tempo, no caixão, usando um terno branco. Era mórbido…
— Deus do céu! — exclamou Afonso, sobrepondo sua voz à de Maldonha.
—… Intensamente mórbido — prosseguia o velho. — Ao ver essa cena, ela gritou. Nesse momento, Marcos entrou no quarto da mãe e perguntou o que estava acontecendo, pois o grito dela foi tão alto que ele acordou no quarto ao lado. Ele se sentou na beira da cama, muito preocupado. Maria estava ofegante, sentada no centro da cama, o rosto molhado de suor. Ela abraçou o filho com força. “Só um pesadelo!”, disse ela. “Só mais um pesadelo!”.
— Era só um sonho? — perguntou Afonso.
— Sim, era só um sonho — respondeu o velho —, mas não apenas um sonho comum.
— E esse terno branco? — perguntou Marsílio. — O que tem a ver?
Maldonha pegou o maço de Pall Mall, retirou um cigarro, colocou-o na boca e acendeu-o com um fósforo, fazendo uma concha com a mão para dar mais volume à chama do palito.
— Vocês vão ver — respondeu, ao soprar a fumaça tragada. — Tenham paciência!
Pedro ajeitou-se no banco e nada disse. Apenas prestava atenção. Apesar de achar que aquilo poderia acontecer com qualquer pessoa, lembrava-se perfeitamente dos sonhos que tivera durante anos ao encontrar o pai caído entre a vida e a morte, e essa lembrança lhe causava uma sensação de mal-estar.
Tudo não passa de sonho, simplesmente sonho, nada mais que isso, tentava se convencer em vão, enquanto ouvia a história contada por Maldonha.
John fazia o possível para não ter de atender a algum freguês que porventura entrasse no bar. Queria saber o que Maldonha queria dizer com aquela história. As duas moças, que trabalhavam para ele, tinham de atender sozinhas aos fregueses, o que não era uma tarefa muito difícil, pois o movimento era pouco.
— Marcos quis saber o que estava afligindo a mãe — prosseguiu Maldonha, ao bater com o dedo indicador no cigarro para derrubar a cinza que se formava na ponta —; queria saber como eram os pesadelos que a incomodavam com tanta frequência, mas ela desconversava, fugia do assunto, preferia guardar pra si aquilo que a incomodava havia quase um ano. Marcos bem que tentava fazer a mãe dizer, mas era inútil, a opinião dela não mudava. Naquela época, o pai de Marcos já era falecido; um derrame causou a morte dele. Desde então, Marcos e a mãe se sustentavam com o dinheiro de uma pequena mercearia que tinham no salão inferior da casa. Além da casa, essa foi a única coisa que o pai de Marcos deixou. Antes da morte do pai, Marcos era um rapaz despreocupado com a vida. As coisas tinham que ser do jeito que ele queria, senão a discussão estava armada. Não que fosse um mau-caráter, não era nada disso, era simplesmente uma rebeldia, algo que com o tempo iria passar. Depois da morte do pai, ele começou a ver as coisas de outra forma, pois havia percebido que a vida não era apenas uma diversão; estava repleta também de deveres e obrigações. Ao perceber isso, passou a não dizer as besteiras que tanto dizia, principalmente quando estava nervoso com a mãe.
— Que besteiras? — perguntou Afonso.
Depois de uma tragada, Maldonha respondeu:
— Besteiras semelhantes àquelas ditas por aquele rapaz da outra história que contei.
Marsílio sorriu.
— Ele também disse que dançaria uma valsa com…?
— Não importa o que ele dizia — interrompeu Maldonha, com rudez na voz, o que desfez o sorriso de Marsílio.
O velho abaixou a cabeça olhando para a ponta do cigarro preso entre os dedos médio e indicador.
— Tudo bem — disse Marsílio, envergonhado. — Continue a sua história, eu…
— Desculpe, eu não quis ser grosso — Maldonha percebeu que havia exagerado. — O que esse rapaz dizia não tem importância nessa história e…
— Tudo bem! Eu compreendo.
Os outros também compreenderam a atitude de Maldonha, mas Pedro a achou estranha e sentiu que algo naquela história da valsa incomodava o velho, mas sem saber o que achar direito preferiu ficar quieto.
— Bem, onde eu estava? — perguntou Maldonha, tentando dar continuidade à sua narrativa.
— Você falava da mudança de atitude de Marcos após a morte do pai — lembrou-lhe Afonso.
— Pois bem — prosseguiu o velho —, a morte do pai do Marcos não foi o único motivo pra essa mudança, que também não aconteceu da noite para o dia. Ele havia conhecido uma moça, logo em seguida à morte do pai.
Maldonha levou o cigarro à boca, pensativo.
— Era uma bela moça — continuou, com ternura na voz. Expeliu a fumaça tragada e, em seu tom de voz grave e habitual, prosseguiu: — Daí em diante, Marcos percebeu que não podia ficar preso a uma mercearia; resolveu então procurar um emprego, pois já estava namorando a moça havia algum tempo e os dois já falavam em casamento. Assim que arrumou um emprego, deixou a mercearia aos cuidados da mãe e da namorada, que passou a ajudar. Em poucos meses, ele conseguiu economizar dinheiro. O local em que trabalhava era distante de sua casa, mesmo assim ele ia de bicicleta para economizar mais. Queria casar logo, por isso dava duro no trabalho e mal tinha tempo pra namorada. Um dia, ele chegou em casa trazendo duas caixas; uma do tamanho de uma caixa de sapatos e a outra um pouco maior. A mãe dele quis saber o que era, mas ele disse que era uma surpresa, que aquilo era algo pra uma ocasião especial, muito especial. Pediu também que ela não mexesse e guardou as caixas sobre o guarda-roupa de seu quarto. Ela respeitou a vontade dele, mas algo em relação àquelas caixas a fazia ter um pressentimento estranho, uma sensação que não conseguia explicar, que a deixava paralisada, como se não existisse nada no mundo além daquelas malditas caixas. Houve noites em que teve sonhos estranhos, até chegou a acordar diante da porta do quarto de Marcos em plena madrugada, depois de ter tido uma crise de sonambulismo, coisa que nunca havia acontecido.
Leandro Maldonha fez uma pausa, bebeu um gole de vinho, tragou e jogou o cigarro ainda quase pela metade no chão, amassando-o em seguida com o calcanhar.
— Os meses foram passando — continuou. — Nesse meio tempo, Marcos fez uma singela cerimônia de noivado e, no mesmo dia, marcou a data do casamento. Ele e a noiva estavam muito ansiosos e viviam falando do casamento. A mãe dele apoiava cada decisão que eles tomavam, só achava que o filho não precisava trabalhar tanto, mas a cada dia Marcos trabalhava mais e mais. O que vou contar agora aconteceu numa noite de chuva. Naquele dia, Maria estava preocupada, pois já havia passado da hora de Marcos chegar. Como sempre, ela estava esperando por ele, mas acabou cochilando no sofá em meio à intensa chuva que caía. Instantes depois, ela viu o filho chegar, empurrando com certa dificuldade a bicicleta com a qual ele ia trabalhar. Ele estava todo machucado, molhado e sujo de barro. Da cabeça dele, escorria muito sangue, que encharcava a camisa na altura do peito. Mas tudo isso não era o que mais assustava Maria…
— Então o que era? — perguntou Marsílio.
— Era o que ele estava vestindo… Era o terno branco.
— De novo esse terno branco? — indagou Marsílio. Na verdade, era como se quisesse reforçar o que acabara de ser dito por Maldonha, que balançou a cabeça de forma afirmativa e deu continuidade à narrativa:
— Fortes batidas na porta despertaram Maria do terror. Novamente ela estava sonhando, como vocês perceberam. Bateram com mais força. Ela foi ver quem era e recebeu a notícia de que o filho havia morrido em um acidente.
— Caramba! — por fim, Pedro manifestou-se, sobrepondo sua voz à de Maldonha, que continuava:
— Depois que os dois homens foram embora, Maria se viu na presença da nora, que estava acompanhada dos pais e de seu único irmão, mais novo que ela. Certo momento, Maria foi para o quarto do filho. A moça foi atrás, enquanto os pais dela e o irmão ficaram na sala. O que aconteceu no quarto, eu não sei ao certo. O que sei é que as caixas que Marcos havia comprado foram abertas. Maria deve ter ido escolher uma roupa para o filho e, ao abrir o guarda-roupa, as caixas caíram no chão.
Maldonha parou de falar para beber o restante do vinho. Depois fez um sinal para John, apontando para o copo. Queria outra dose.
— Maria pegou a caixa maior e a entregou à nora, pedindo a ela que abrisse — continuou Maldonha, enquanto John enchia o copo com vinho —; parecia ter medo de ver ela mesma o conteúdo da caixa.
— Ela abriu? — perguntou Afonso.
— Sim. A moça abriu a caixa e pegou o seu conteúdo, e Maria recuou assustada. Os seus pesadelos pareciam ter vindo à tona e todos de uma única vez. As lembranças dos dias em que não conseguia ficar um único segundo sem pensar naquelas malditas caixas vieram à memória dela. Os pesadelos pareciam ter adquirido forma e estavam ao seu redor e a cercavam por todos os lados. A moça perguntou à Maria o que estava acontecendo, se era com aquilo que iam vestir Marcos para o velório.
— O terno branco? — perguntou Marsílio, em tom de afirmação. — Foi o terno branco que ela retirou da caixa? E na outra estavam os sapatos?
— Exatamente — confirmou Maldonha. — Foi o terno que a moça retirou da caixa, e Maria não acreditava no que estava vendo. Aquilo não podia ser real. Essa era a sua única certeza. Os três, que estavam na sala, apareceram no quarto e, rindo, começaram a se aproximar de Maria. Um riso que aos poucos virou uma intensa gargalhada. A moça ainda segurava o terno branco, mas antes que ela fizesse outra pergunta, Maria arrebatou o terno e, em meio a um grito, o jogou no chão. De repente, tudo estava na mais absoluta escuridão, e mais uma vez Marcos entrou no quarto de sua mãe assustado.
— Você está de brincadeira, não é? — perguntou Afonso. — Era outro sonho?!
— Eu tenho mais o que fazer! — resmungou John, seguindo rumo ao banheiro. — Terno branco, agora mais essa!… — e continuou a resmungar enquanto andava.
— Depois disso, o que aconteceu? — perguntou Marsílio. — Ela resolveu contar os sonhos para o filho?
— Sim — respondeu Maldonha, enquanto retirava o maço de cigarros do bolso da camisa. — Contou com todos os detalhes que eu contei aqui pra vocês?
— Você não quer nos dizer que isso realmente aconteceu, não é? — perguntou Afonso, em tom irônico.
— Por quê? Você acha que não? — perguntou Maldonha com rudez.
Afonso ficou em silêncio.
Marsílio pediu outro chope a Júlia; em seguida, perguntou a Maldonha:
— O que havia nas caixas então, já que tudo não passou de sonho?
— O par de sapatos e o terno — respondeu Maldonha e, em seguida, acendeu o cigarro.
— Mas como assim? — perguntou Afonso.
— Quando acordou desse último sonho, Maria resolveu contar para o filho os sonhos que a atormentavam, com todos esses detalhes que eu contei na história. Depois, ela foi até o quarto dele, pegou as caixas e abriu as duas de modo eufórico. Ele não gostou da atitude dela, mas ela tentou se justificar contando tudo o que estava se passando… Contou os sonhos com todos os detalhes; disse que achava que eles eram avisos, mas Marcos disse que era besteira e chegou a acusar a mãe de ter mexido nas caixas antes. Ele achava que era impossível de ela sonhar com algo que nunca havia visto, mas ela disse que os sonhos começaram antes mesmo de ele comprar aquele maldito terno. Ele acusava, e ela negava, negava e continuou negando; disse que as caixas lhe davam uma sensação estranha e que não faltou vontade, mas nunca havia mexido nelas, a não ser naquele dia.
John voltou do banheiro, mas não parou próximo do local no qual estavam Maldonha e os outros. Passou direto e foi atender a um rapaz que acabara de chegar e estava encostado ao balcão. O freguês pediu um maço de cigarros e queria saber se havia ali próximo alguma loja que vendesse filmes para máquina fotográfica e utensílios para pintura; alegou que não conhecia quase nada na região, pois acabara de chegar de outro estado e ainda estava se adaptando. John disse não saber; o rapaz agradeceu e foi embora.
Enquanto isso, Afonso queria saber em qual ocasião Marcos usou o terno. Maldonha tentou desconversar, como havia feito na primeira história que contou, mas Afonso insistiu.
— Usou no dia de seu casamento — respondeu Maldonha. — O dia de seu casamento era a ocasião tão especial.
— Mas quem contou essa história pra você? — perguntou Marsílio.
— Isso não importa — desconversou o velho.
Afonso e Marsílio insistiram com outras perguntas, e Maldonha desconversava sempre que possível. Depois de alguns instantes, o velho pagou o que devia e foi embora, alegando que não queria tomar banho de chuva.
De fato, o tempo havia mudado, ventava um pouco, e a temperatura havia caído uns cinco graus, anunciando a forte chuva que estava prestes a cair; porém, na verdade, ao dizer que não queria tomar banho de chuva, Maldonha tentava livrar-se do bombardeio de perguntas que lhe faziam e, como pretexto, usou isso para fugir do questionário.
— Eu não sei como vocês aguentam ficar ouvindo esse velho — resmungou John.
— Você também estava ouvindo — alertou Marsílio —, então não nos censure.
— Por acaso vocês chegaram a alguma conclusão depois que o velho falou? — continuou a atacar John. — Esse velho está ficando gagá, e eu sou um idiota por ficar ouvindo o que ele diz.
— Gringo, veja quanto deu a minha conta e pendura pra mim — disse Pedro. — Amanhã eu acerto com você, tudo bem?
— Tudo bem — concordou John, voltando os olhos para Pedro, que se despediu dos outros e, apressado, saiu do bar; nem sequer chegou a ouvir John dizer que Maldonha era uma piada. Sua intenção era acompanhar o velho, o que não seria difícil. Quando chegou à calçada, Maldonha não havia andado sequer trinta metros. Assobiou para ver se ele olhava para trás, mas isso não deu resultado. Então, correu para alcançá-lo. Não sabia bem por que estava tomando essa atitude; era como se algo o impulsionasse contra a própria vontade. Correr foi até bom, pois o fez ter uma sensação de que a temperatura havia subido em vez de caído, como era o caso.
— Maldonha! — chamou ele, assim que alcançou o velho, e a voz estava arfante quando continuou: — Eu queria… lhe fazer uma pergunta.
Maldonha parou de andar e voltou-se para Pedro.
— Faça. Pode fazer… Pedro. Não é esse o seu nome?
— Sim, é. Mas… mas eu já lhe falei o meu nome?
— Alguém deve ter falado o seu nome lá no bar e eu… decorei.
— Claro! — concordou Pedro, mas sem convicção, pensando no fato de também não conhecer muito bem o velho e, mesmo assim, saber o nome dele.
— Você queria me fazer uma pergunta. Pode perguntar, Pedro.
— De onde você tira essas histórias?
— Os seus amigos lá no bar já me fizeram essa pergunta. Que diferença faz de onde eu tiro essas histórias?
— Nenhuma… eu acho.
— Então por que quer saber? — perguntou Maldonha, em tom firme.
Pedro sentiu-se sem jeito.
— Por saber, somente isso.
— Isso não é o mais importante. E mesmo que eu lhe contasse de onde tiro essas histórias, você não acreditaria.
— Por que acha que não?
— Intuição.
Pedro ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Nem sequer sabia por que estava ali diante de Maldonha. Por um instante, arrependeu-se de tê-lo acompanhado.
— O senhor tem razão — disse por fim —, eu sempre tive a opinião de que sonhos são sonhos e não passam disso, mas não é por pensar assim que quero mudar a opinião dos outros.
Maldonha jogou a guimba do cigarro no chão.
— Eu não quero mudar a opinião de ninguém — disse o velho, pisando a guimba do cigarro para apagá-lo. — Quem sou eu pra querer fazer isso?
— Me desculpe, eu…
— Você me dá a impressão de que é um homem que só acredita nas coisas óbvias — interferiu Maldonha.
— Não é bem assim…
— Então me diga o que você acha de Deus — novamente Maldonha interferiu e pareceu ter acertado em cheio o cerne da questão.
Pedro engoliu em seco, olhando para Maldonha. Preferiu não responder, mas não por hesitação. Era algo que não conseguia explicar, algo que fez o coração bater fora de ritmo.
— O que você acha de Deus? — insistiu o velho.
— Eu não acredito em Deus — respondeu, em tom baixo.
— Mas você deveria acreditar!
— Mas por quê? Por que eu deveria acreditar?
Maldonha olhou para uma árvore de mais ou menos três metros de altura que ficava do outro lado da rua. O vento balançava-lhe desordenadamente a copa de um lado para outro.
Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso pai — disse e, apontando para a árvore, acrescentou: — E digo a você, Pedro, por minha interpretação, que nenhuma folha daquela árvore cai sem o consentimento de Deus.
Nesse instante, um relâmpago cortou o céu em duas partes, sequenciado de um estrondoso trovão. A claridade e o barulho assustaram Pedro, que não acreditava no que Maldonha havia dito. O velho o olhava de forma serena, as bolsas formadas debaixo dos olhos davam-lhe um ar de tristeza e cansaço, e seu olhar estava repleto de um significado que Pedro não conseguia compreender.
— E se eu for lá e arrancar não só uma única folha, mas sim um ramo inteiro com as minhas mãos, sem ter que precisar do consentimento de Deus? — perguntou Pedro de forma desdenhosa, assim que se recompôs do susto. — O que você me diz?
Maldonha sorriu, e essa foi a primeira vez que Pedro o vira sorrir.
— Do que está rindo? — perguntou Pedro, incomodado.
O velho passou a mão direita nos cabelos grisalhos e calvos; um riso ingênuo formou-se novamente em seu rosto, contrastando com as rugas da face.
— Da sua ingenuidade — respondeu ele. — Se você fosse lá e arrancasse as folhas que disse que arrancaria, eu diria que você está usando da liberdade que Deus lhe deu pra fazer o que quiser. A mesma liberdade que você tem de crer n’Ele ou não. Você pode cortar a árvore inteira se assim o desejar, mas tem que ter a consciência de que é responsável pelas coisas que faz, sejam elas boas ou ruins. Isso é o livre-arbítrio, Pedro, um grande patrimônio que Deus deu aos homens — fez uma pausa e arqueou as espessas sobrancelhas grisalhas. — Mas o livre-arbítrio é uma coisa muito perigosa, pois é como se fosse uma estrada que se divide em uma bifurcação, e é aí que mora o perigo. Que caminho devemos seguir? — fez nova pausa, aproximou-se um pouco mais de Pedro, que ouvia atentamente, e continuou: — O caminho quem escolhe somos nós, e um deles nos leva à salvação. A escolha de um desses caminhos fará toda a diferença, Pedro. Toda a diferença.
O vento, que já era forte, começou a soprar com mais intensidade, e os relâmpagos se intensificaram. Volumosas gotas de chuva começaram a cair. Pedro sentiu uma cair no braço, depois outra no rosto.
— O seu Deus deve estar mandando a gente ir logo pra casa — disse Pedro com ironia, ao dar o primeiro passo.
Sem dizer palavra, Maldonha também se apressou. Andaram juntos poucos metros, depois se separaram. O velho entrou na estreita rua sem saída em que morava, e Pedro teria de andar mais uns cem metros até chegar a casa. Tentou fazer isso antes que as poucas gotas que caíam se transformassem de uma vez no temporal que o vento profetizava, mas não conseguiu, pois a chuva começou a cair torrencialmente. Ele correu na tentativa de chegar logo ao destino, mas isso não o impediu de estar todo molhado quando por fim cruzou a porta da sala.
Ao ver o pai chegar todo molhado, Lívia correu para buscar uma toalha. Em um instante, estava de volta.
— Eu pensei que você já estivesse dormindo — disse ele, recebendo a toalha da filha.
— Eu estava assistindo a um filme na tevê. Não é lá essas coisas, mas quebra o galho.
Quebra o galho…, pensou Pedro, enquanto enxugava o rosto com a toalha. Eu vou é quebrar um galho na cabeça dele, e vou usar o meu livre-arbítrio pra fazer isso. Velho maluco!
— Que chuva, não? — disse ela.
— Pois não é? Tomei um banho!
Em seguida, Pedro foi para o banheiro de seu quarto e, ao invés de água fria, como na sexta-feira, tomou banho de água quente. Na verdade, quase fervendo. Quando a água caía-lhe no corpo frio, todas as juntas doíam como se estivesse tomando um choque.
Quando saiu do banheiro, voltou à sala e disse à filha que ia se deitar. Deu-lhe um beijo no rosto e subiu. No quarto, deixou acesa apenas a luz do abajur ao lado da cama e deitou-se, colocando atrás da cabeça as mãos entrelaçadas pelos dedos. Ficou nessa posição por longo tempo, olhando para o teto, ouvindo o barulho do vento e da chuva lá fora, misturado a relâmpagos e trovões, que, de quando em quando, interrompiam-lhe os pensamentos. O sono começou a envolvê-lo aos poucos, e ele adormeceu sem ao menos apagar a luz do abajur, mergulhando no enigmático mundo dos sonhos. 


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