Uma Ocasião Especial
Instantes
depois, Maldonha voltou
do banheiro enxugando as mãos na lateral das calças.
—
Bem — disse ele, encostando-se ao balcão —, a mãe desse rapaz dessa história…
esse tal Marcos, se chamava Maria. Tudo começou quando ele entrou no quarto dela,
e ela quase teve um ataque ao ver que ele estava nu.
— Nu?! — estranhou
Afonso.
— Sim, nu — repetiu
Maldonha, olhando para Afonso. — Ele perguntou o que ela achava daquilo, mas ela
não respondeu; estava abismada. Ele a chamou pra sala, pois tinha algo a
mostrar pra ela. Ela estranhou toda aquela atitude do filho, que podia ter
todos os defeitos do mundo, mas naquele momento estava completamente diferente
do que era. Imaginem a aflição dela ao ter que cruzar aquela porta e, talvez,
ver algo ainda mais constrangedor do que o filho nu… Mesmo assim, ela começou a
caminhar em direção à porta. No outro cômodo se deparou com muitas pessoas, que
cochichavam todas ao mesmo tempo. Ela se aproximou deles. Tudo era estranho,
pois apesar de estar nu, Marcos passava despercebido por todos, que olhavam apenas
pra ela, como se ela estivesse sozinha. Ao chegarem no centro da sala, ela se
deparou com um caixão repleto de flores e, enquanto olhava perturbada para o
caixão, Marcos, que ainda segurava a mão dela, perguntou: “E assim, que tal
estou?”.
Maldonha fez uma pausa;
em seguida, continuou:
— Maria não conseguiu
responder à pergunta. Não era o caixão que a deixava com uma sensação de enjoo;
era outra coisa. Era a mais confusa e assustadora cena que tinha visto na vida.
Era algo que uma pessoa, em sã consciência, nunca acreditaria que pudesse ser
possível; mas estava ali, diante de seus olhos, o seu filho nu, segurando a mão
dela e, ao mesmo tempo, no caixão, usando um terno branco. Era mórbido…
— Deus do céu! — exclamou
Afonso, sobrepondo sua voz à de Maldonha.
—… Intensamente mórbido —
prosseguia o velho. — Ao ver essa cena, ela gritou. Nesse momento, Marcos
entrou no quarto da mãe e perguntou o que estava acontecendo, pois o grito dela
foi tão alto que ele acordou no quarto ao lado. Ele se sentou na beira da cama,
muito preocupado. Maria estava ofegante, sentada no centro da cama, o rosto
molhado de suor. Ela abraçou o filho com força. “Só um pesadelo!”, disse ela.
“Só mais um pesadelo!”.
— Era só um sonho? —
perguntou Afonso.
— Sim, era só um sonho —
respondeu o velho —, mas não apenas um sonho comum.
— E esse terno branco? —
perguntou Marsílio. — O que tem a ver?
Maldonha pegou o maço de
Pall Mall, retirou um cigarro, colocou-o na boca e acendeu-o com um fósforo,
fazendo uma concha com a mão para dar mais volume à chama do palito.
— Vocês vão ver —
respondeu, ao soprar a fumaça tragada. — Tenham paciência!
Pedro ajeitou-se no banco
e nada disse. Apenas prestava atenção. Apesar de achar que aquilo poderia
acontecer com qualquer pessoa, lembrava-se perfeitamente dos sonhos que tivera
durante anos ao encontrar o pai caído entre a vida e a morte, e essa lembrança lhe
causava uma sensação de mal-estar.
Tudo não passa de sonho, simplesmente sonho, nada mais que
isso, tentava se
convencer em vão, enquanto ouvia a história contada por Maldonha.
John fazia o possível
para não ter de atender a algum freguês que porventura entrasse no bar. Queria
saber o que Maldonha queria dizer com aquela história. As duas moças, que
trabalhavam para ele, tinham de atender sozinhas aos fregueses, o que não era
uma tarefa muito difícil, pois o movimento era pouco.
— Marcos quis saber o que
estava afligindo a mãe — prosseguiu Maldonha, ao bater com o dedo indicador no
cigarro para derrubar a cinza que se formava na ponta —; queria saber como eram
os pesadelos que a incomodavam com tanta frequência, mas ela desconversava,
fugia do assunto, preferia guardar pra si aquilo que a incomodava havia quase
um ano. Marcos bem que tentava fazer a mãe dizer, mas era inútil, a opinião
dela não mudava. Naquela época, o pai de Marcos já era falecido; um derrame
causou a morte dele. Desde então, Marcos e a mãe se sustentavam com o dinheiro
de uma pequena mercearia que tinham no salão inferior da casa. Além da casa,
essa foi a única coisa que o pai de Marcos deixou. Antes da morte do pai,
Marcos era um rapaz despreocupado com a vida. As coisas tinham que ser do jeito
que ele queria, senão a discussão estava armada. Não que fosse um mau-caráter,
não era nada disso, era simplesmente uma rebeldia, algo que com o tempo iria
passar. Depois da morte do pai, ele começou a ver as coisas de outra forma,
pois havia percebido que a vida não era apenas uma diversão; estava repleta
também de deveres e obrigações. Ao perceber isso, passou a não dizer as besteiras que tanto dizia, principalmente
quando estava nervoso com a mãe.
— Que besteiras? —
perguntou Afonso.
Depois de uma tragada,
Maldonha respondeu:
— Besteiras semelhantes
àquelas ditas por aquele rapaz da outra história que contei.
Marsílio sorriu.
— Ele também disse que
dançaria uma valsa com…?
— Não importa o que ele
dizia — interrompeu Maldonha, com rudez na voz, o que desfez o sorriso de
Marsílio.
O velho abaixou a cabeça
olhando para a ponta do cigarro preso entre os dedos médio e indicador.
— Tudo bem — disse Marsílio,
envergonhado. — Continue a sua história, eu…
— Desculpe, eu não quis
ser grosso — Maldonha percebeu que havia exagerado. — O que esse rapaz dizia
não tem importância nessa história e…
— Tudo bem! Eu
compreendo.
Os outros também
compreenderam a atitude de Maldonha, mas Pedro a achou estranha e sentiu que
algo naquela história da valsa incomodava o velho, mas sem saber o que achar
direito preferiu ficar quieto.
— Bem, onde eu estava? —
perguntou Maldonha, tentando dar continuidade à sua narrativa.
— Você falava da mudança
de atitude de Marcos após a morte do pai — lembrou-lhe Afonso.
— Pois bem — prosseguiu o
velho —, a morte do pai do Marcos não foi o único motivo pra essa mudança, que
também não aconteceu da noite para o dia. Ele havia conhecido uma moça, logo em
seguida à morte do pai.
Maldonha levou o cigarro
à boca, pensativo.
— Era uma bela moça —
continuou, com ternura na voz. Expeliu a fumaça tragada e, em seu tom de voz
grave e habitual, prosseguiu: — Daí em diante, Marcos percebeu que não podia
ficar preso a uma mercearia; resolveu então procurar um emprego, pois já estava
namorando a moça havia algum tempo e os dois já falavam em casamento. Assim que
arrumou um emprego, deixou a mercearia aos cuidados da mãe e da namorada, que
passou a ajudar. Em poucos meses, ele conseguiu economizar dinheiro. O local em
que trabalhava era distante de sua casa, mesmo assim ele ia de bicicleta para
economizar mais. Queria casar logo, por isso dava duro no trabalho e mal tinha
tempo pra namorada. Um dia, ele chegou em casa trazendo duas caixas; uma do
tamanho de uma caixa de sapatos e a outra um pouco maior. A mãe dele quis saber
o que era, mas ele disse que era uma surpresa, que aquilo era algo pra uma ocasião
especial, muito especial. Pediu também que ela não mexesse e guardou as
caixas sobre o guarda-roupa de seu quarto. Ela respeitou a vontade dele, mas
algo em relação àquelas caixas a fazia ter um pressentimento estranho, uma
sensação que não conseguia explicar, que a deixava paralisada, como se não
existisse nada no mundo além daquelas malditas caixas. Houve noites em que teve
sonhos estranhos, até chegou a acordar diante da porta do quarto de Marcos em
plena madrugada, depois de ter tido uma crise de sonambulismo, coisa que nunca
havia acontecido.
Leandro Maldonha fez uma
pausa, bebeu um gole de vinho, tragou e jogou o cigarro ainda quase pela metade
no chão, amassando-o em seguida com o calcanhar.
— Os meses foram passando
— continuou. — Nesse meio tempo, Marcos fez uma singela cerimônia de noivado e,
no mesmo dia, marcou a data do casamento. Ele e a noiva estavam muito ansiosos
e viviam falando do casamento. A mãe dele apoiava cada decisão que eles
tomavam, só achava que o filho não precisava trabalhar tanto, mas a cada dia
Marcos trabalhava mais e mais. O que vou contar agora aconteceu numa noite de
chuva. Naquele dia, Maria estava preocupada, pois já havia passado da hora de
Marcos chegar. Como sempre, ela estava esperando por ele, mas acabou cochilando
no sofá em meio à intensa chuva que caía. Instantes depois, ela viu o filho
chegar, empurrando com certa dificuldade a bicicleta com a qual ele ia
trabalhar. Ele estava todo machucado, molhado e sujo de barro. Da cabeça dele,
escorria muito sangue, que encharcava a camisa na altura do peito. Mas tudo
isso não era o que mais assustava Maria…
— Então o que era? —
perguntou Marsílio.
— Era o que ele estava
vestindo… Era o terno branco.
— De novo esse terno
branco? — indagou Marsílio. Na verdade, era como se quisesse reforçar o que
acabara de ser dito por Maldonha, que balançou a cabeça de forma afirmativa e
deu continuidade à narrativa:
— Fortes batidas na porta
despertaram Maria do terror. Novamente ela estava sonhando, como vocês
perceberam. Bateram com mais força. Ela foi ver quem era e recebeu a notícia de
que o filho havia morrido em um acidente.
— Caramba! — por fim,
Pedro manifestou-se, sobrepondo sua voz à de Maldonha, que continuava:
— Depois que os dois
homens foram embora, Maria se viu na presença da nora, que estava acompanhada
dos pais e de seu único irmão, mais novo que ela. Certo momento, Maria foi para
o quarto do filho. A moça foi atrás, enquanto os pais dela e o irmão ficaram na
sala. O que aconteceu no quarto, eu não sei ao certo. O que sei é que as caixas
que Marcos havia comprado foram abertas. Maria deve ter ido escolher uma roupa
para o filho e, ao abrir o guarda-roupa, as caixas caíram no chão.
Maldonha parou de falar
para beber o restante do vinho. Depois fez um sinal para John, apontando para o
copo. Queria outra dose.
— Maria pegou a caixa
maior e a entregou à nora, pedindo a ela que abrisse — continuou Maldonha,
enquanto John enchia o copo com vinho —; parecia ter medo de ver ela mesma o
conteúdo da caixa.
— Ela abriu? — perguntou
Afonso.
— Sim. A moça abriu a
caixa e pegou o seu conteúdo, e Maria recuou assustada. Os seus pesadelos
pareciam ter vindo à tona e todos de uma única vez. As lembranças dos dias em
que não conseguia ficar um único segundo sem pensar naquelas malditas caixas
vieram à memória dela. Os pesadelos pareciam ter adquirido forma e estavam ao
seu redor e a cercavam por todos os lados. A moça perguntou à Maria o que
estava acontecendo, se era com aquilo que iam vestir Marcos para o velório.
— O terno branco? —
perguntou Marsílio, em tom de afirmação. — Foi o terno branco que ela retirou
da caixa? E na outra estavam os sapatos?
— Exatamente — confirmou
Maldonha. — Foi o terno que a moça retirou da caixa, e Maria não acreditava no
que estava vendo. Aquilo não podia ser real. Essa era a sua única certeza. Os
três, que estavam na sala, apareceram no quarto e, rindo, começaram a se
aproximar de Maria. Um riso que aos poucos virou uma intensa gargalhada. A moça
ainda segurava o terno branco, mas antes que ela fizesse outra pergunta, Maria
arrebatou o terno e, em meio a um grito, o jogou no chão. De repente, tudo
estava na mais absoluta escuridão, e mais uma vez Marcos entrou no quarto de
sua mãe assustado.
— Você está de
brincadeira, não é? — perguntou Afonso. — Era outro sonho?!
— Eu tenho mais o que
fazer! — resmungou John, seguindo rumo ao banheiro. — Terno branco, agora mais
essa!… — e continuou a resmungar enquanto andava.
— Depois disso, o que
aconteceu? — perguntou Marsílio. — Ela resolveu contar os sonhos para o filho?
— Sim — respondeu
Maldonha, enquanto retirava o maço de cigarros do bolso da camisa. — Contou com
todos os detalhes que eu contei aqui pra vocês?
— Você não quer nos dizer
que isso realmente aconteceu, não é? — perguntou Afonso, em tom irônico.
— Por quê? Você acha que
não? — perguntou Maldonha com rudez.
Afonso ficou em silêncio.
Marsílio pediu outro
chope a Júlia; em seguida, perguntou a Maldonha:
— O que havia nas caixas
então, já que tudo não passou de sonho?
— O par de sapatos e o
terno — respondeu Maldonha e, em seguida, acendeu o cigarro.
— Mas como assim? —
perguntou Afonso.
— Quando acordou desse
último sonho, Maria resolveu contar para o filho os sonhos que a atormentavam,
com todos esses detalhes que eu contei na história. Depois, ela foi até o
quarto dele, pegou as caixas e abriu as duas de modo eufórico. Ele não gostou
da atitude dela, mas ela tentou se justificar contando tudo o que estava se
passando… Contou os sonhos com todos os detalhes; disse que achava que eles
eram avisos, mas Marcos disse que era besteira e chegou a acusar a mãe de ter
mexido nas caixas antes. Ele achava que era impossível de ela sonhar com algo
que nunca havia visto, mas ela disse que os sonhos começaram antes mesmo de ele
comprar aquele maldito terno. Ele acusava, e ela negava, negava e continuou
negando; disse que as caixas lhe davam uma sensação estranha e que não faltou
vontade, mas nunca havia mexido nelas, a não ser naquele dia.
John voltou do banheiro,
mas não parou próximo do local no qual estavam Maldonha e os outros. Passou
direto e foi atender a um rapaz que acabara de chegar e estava encostado ao
balcão. O freguês pediu um maço de cigarros e queria saber se havia ali próximo
alguma loja que vendesse filmes para máquina fotográfica e utensílios para
pintura; alegou que não conhecia quase nada na região, pois acabara de chegar
de outro estado e ainda estava se adaptando. John disse não saber; o rapaz
agradeceu e foi embora.
Enquanto isso, Afonso
queria saber em qual ocasião Marcos usou o terno. Maldonha tentou desconversar,
como havia feito na primeira história que contou, mas Afonso insistiu.
— Usou no dia de seu
casamento — respondeu Maldonha. — O dia de seu casamento era a ocasião tão
especial.
— Mas quem contou essa
história pra você? — perguntou Marsílio.
— Isso não importa —
desconversou o velho.
Afonso e Marsílio
insistiram com outras perguntas, e Maldonha desconversava sempre que possível.
Depois de alguns instantes, o velho pagou o que devia e foi embora, alegando
que não queria tomar banho de chuva.
De fato, o tempo havia
mudado, ventava um pouco, e a temperatura havia caído uns cinco graus, anunciando
a forte chuva que estava prestes a cair; porém, na verdade, ao dizer que não
queria tomar banho de chuva, Maldonha tentava livrar-se do bombardeio de
perguntas que lhe faziam e, como pretexto, usou isso para fugir do
questionário.
— Eu não sei como vocês
aguentam ficar ouvindo esse velho — resmungou John.
— Você também estava
ouvindo — alertou Marsílio —, então não nos censure.
— Por acaso vocês
chegaram a alguma conclusão depois que o velho falou? — continuou a atacar
John. — Esse velho está ficando gagá, e eu sou um idiota por ficar ouvindo o
que ele diz.
— Gringo, veja quanto deu
a minha conta e pendura pra mim — disse Pedro. — Amanhã eu acerto com você, tudo
bem?
— Tudo bem — concordou
John, voltando os olhos para Pedro, que se despediu dos outros e, apressado,
saiu do bar; nem sequer chegou a ouvir John dizer que Maldonha era uma piada.
Sua intenção era acompanhar o velho, o que não seria difícil. Quando chegou à
calçada, Maldonha não havia andado sequer trinta metros. Assobiou para ver se
ele olhava para trás, mas isso não deu resultado. Então, correu para
alcançá-lo. Não sabia bem por que estava tomando essa atitude; era como se algo
o impulsionasse contra a própria
vontade. Correr foi até bom, pois o fez ter uma sensação de que a temperatura
havia subido em vez de caído, como era o caso.
— Maldonha! — chamou ele,
assim que alcançou o velho, e a voz estava arfante quando continuou: — Eu
queria… lhe fazer uma pergunta.
Maldonha parou de andar e
voltou-se para Pedro.
— Faça. Pode fazer…
Pedro. Não é esse o seu nome?
— Sim, é. Mas… mas eu já
lhe falei o meu nome?
— Alguém deve ter falado
o seu nome lá no bar e eu… decorei.
— Claro! — concordou
Pedro, mas sem convicção, pensando no fato de também não conhecer muito bem o
velho e, mesmo assim, saber o nome dele.
— Você queria me fazer
uma pergunta. Pode perguntar, Pedro.
— De onde você tira essas
histórias?
— Os seus amigos lá no
bar já me fizeram essa pergunta. Que diferença faz de onde eu tiro essas
histórias?
— Nenhuma… eu acho.
— Então por que quer
saber? — perguntou Maldonha, em tom firme.
Pedro sentiu-se sem
jeito.
— Por saber, somente
isso.
— Isso não é o mais
importante. E mesmo que eu lhe contasse de onde tiro essas histórias, você não
acreditaria.
— Por que acha que não?
— Intuição.
Pedro ficou em silêncio. Não sabia
o que dizer. Nem sequer sabia por que estava ali diante de Maldonha. Por um
instante, arrependeu-se de tê-lo acompanhado.
— O senhor tem razão —
disse por fim —, eu sempre tive a opinião de que sonhos são sonhos e não passam
disso, mas não é por pensar assim que quero mudar a opinião dos outros.
Maldonha jogou a guimba
do cigarro no chão.
— Eu não quero mudar a
opinião de ninguém — disse o velho, pisando a guimba do cigarro para apagá-lo. —
Quem sou eu pra querer fazer isso?
— Me desculpe, eu…
— Você me dá a impressão
de que é um homem que só acredita nas coisas óbvias — interferiu Maldonha.
— Não é bem assim…
— Então me diga o que
você acha de Deus — novamente Maldonha interferiu e pareceu ter acertado em
cheio o cerne da questão.
Pedro engoliu em seco,
olhando para Maldonha. Preferiu não responder, mas não por hesitação. Era algo
que não conseguia explicar, algo que fez o coração bater fora de ritmo.
— O que você acha de
Deus? — insistiu o velho.
— Eu não acredito em Deus
— respondeu, em tom baixo.
— Mas você deveria
acreditar!
— Mas por quê? Por que eu
deveria acreditar?
Maldonha olhou para uma
árvore de mais ou menos três metros de altura que ficava do outro lado da rua.
O vento balançava-lhe desordenadamente a copa de um lado para outro.
— Não se vendem dois passarinhos por um
ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso pai — disse e,
apontando para a árvore, acrescentou: — E digo a você, Pedro, por minha
interpretação, que nenhuma folha daquela árvore cai sem o consentimento de
Deus.
Nesse
instante, um relâmpago cortou o céu em duas partes, sequenciado de um
estrondoso trovão. A claridade e o barulho assustaram Pedro, que não acreditava
no que Maldonha havia dito. O velho o olhava de forma serena, as bolsas
formadas debaixo dos olhos davam-lhe um ar de tristeza e cansaço, e seu olhar estava
repleto de um significado que Pedro não conseguia compreender.
— E se eu for lá e
arrancar não só uma única folha, mas sim um ramo inteiro com as minhas mãos,
sem ter que precisar do consentimento de Deus? — perguntou Pedro de forma
desdenhosa, assim que se recompôs do susto. — O que você me diz?
Maldonha sorriu, e essa
foi a primeira vez que Pedro o vira sorrir.
— Do que está rindo? —
perguntou Pedro, incomodado.
O velho passou a mão
direita nos cabelos grisalhos e calvos; um riso ingênuo formou-se novamente em
seu rosto, contrastando com as rugas da face.
— Da sua ingenuidade —
respondeu ele. — Se você fosse lá e arrancasse as folhas que disse que
arrancaria, eu diria que você está usando da liberdade que Deus lhe deu pra
fazer o que quiser. A mesma liberdade que você tem de crer n’Ele ou não. Você
pode cortar a árvore inteira se assim o desejar, mas tem que ter a consciência
de que é responsável pelas coisas que faz, sejam elas boas ou ruins. Isso é o
livre-arbítrio, Pedro, um grande patrimônio que Deus deu aos homens — fez uma
pausa e arqueou as espessas sobrancelhas grisalhas. — Mas o livre-arbítrio é
uma coisa muito perigosa, pois é como se fosse uma estrada que se divide em uma
bifurcação, e é aí que mora o perigo. Que caminho devemos seguir? — fez nova
pausa, aproximou-se um pouco mais de Pedro, que ouvia atentamente, e continuou:
— O caminho quem escolhe somos nós, e um deles nos leva à salvação. A escolha
de um desses caminhos fará toda a diferença, Pedro. Toda a diferença.
O vento, que já era
forte, começou a soprar com mais intensidade, e os relâmpagos se
intensificaram. Volumosas gotas de chuva começaram a cair. Pedro sentiu uma
cair no braço, depois outra no rosto.
— O seu Deus deve estar
mandando a gente ir logo pra casa — disse Pedro com ironia, ao dar o primeiro
passo.
Sem dizer palavra,
Maldonha também se apressou. Andaram juntos poucos metros, depois se separaram.
O velho entrou na estreita rua sem saída em que morava, e Pedro teria de andar mais uns cem
metros até chegar a casa. Tentou fazer isso antes que as poucas gotas que caíam
se transformassem de uma vez no temporal que o vento profetizava, mas não
conseguiu, pois a chuva começou a cair torrencialmente. Ele correu na tentativa
de chegar logo ao destino, mas isso não o impediu de estar todo molhado quando
por fim cruzou a porta da sala.
Ao ver o pai chegar todo
molhado, Lívia correu para buscar uma toalha. Em um instante, estava de volta.
— Eu pensei que você já
estivesse dormindo — disse ele, recebendo a toalha da filha.
— Eu estava assistindo a
um filme na tevê. Não é lá essas coisas, mas quebra o galho.
Quebra o galho…, pensou Pedro, enquanto enxugava o rosto com a toalha. Eu vou é quebrar um galho na cabeça dele, e
vou usar o meu livre-arbítrio pra fazer isso. Velho maluco!
— Que chuva, não? — disse
ela.
— Pois não é? Tomei um banho!
Em seguida, Pedro foi
para o banheiro de seu quarto e, ao invés de água fria, como na sexta-feira,
tomou banho de água quente. Na verdade, quase fervendo. Quando a água caía-lhe
no corpo frio, todas as juntas doíam como se estivesse tomando um choque.
Quando saiu do banheiro,
voltou à sala e disse à filha que ia se deitar. Deu-lhe um beijo no rosto e
subiu. No quarto, deixou acesa apenas a luz do abajur ao lado da cama e
deitou-se, colocando atrás da cabeça as mãos entrelaçadas pelos dedos. Ficou nessa
posição por longo tempo, olhando para o teto, ouvindo o barulho do vento e da
chuva lá fora, misturado a relâmpagos e trovões, que, de quando em quando,
interrompiam-lhe os pensamentos. O sono começou a envolvê-lo aos poucos, e ele
adormeceu sem ao menos apagar a luz do abajur, mergulhando no enigmático mundo
dos sonhos.
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